17 fevereiro 2008

CAPÍTULO 3

Como bom gato, Rivald sempre foi observador. No minuto e meio sob cuidados de Gott, difícil dizer se mais ouviu ou contemplou. Quanto à primeira alternativa, ninguém tem opção de tapar os ouvidos diante de palavras. Um gato, então, animal equilibrado em quatro patas, nunca teria um subterfúgio deste gênero.
Pois Rivald ouviu mais do que a prudência recomendaria. Chamou-lhe atenção o número 84. Aliado às palavras corpo, fim, abuso e mutilação, sussuradas por Gott, o gato compôs um quadro, no mínimo, aterrorizante. À primeira vista, coube-lhe o papel de vítima, talvez em uma versão parisiense do que mais tarde viria a tornar-se o churrasquinho de gato.
Como bom francês, Rivald manteve a fleuma e jamais decompôs-se em desespero, como fariam congêneres de outros países. Mesmo nervoso, manteve o ronronar indicativo de felicidade e acatou cada movimento amistoso de Gott. Claro, um minuto e meio demoraram como nunca a passar, mas já que o mundo é dos espertos, dar bandeira em uma hora dessas equivalia a entrar direto na panela.
Gott afastou-se, mas não levou consigo o medo entranhado em Rivald. Refeito da sensação de gaticídio iminente, o bichano respirou e arriscou um auto-questionamento:
– Sou um homem ou um gato?
Resposta óbvia. Eis então que veio o movimento a seguir, a reação, a resposta, isto não poderia ficar assim, como gato, animal mais esperto que os imbecis dos cães, ficava claro estar diante de um assassino, ou melhor, um serial killer, afinal, 84 jamais seria número de telefone (inexistente na Paris pré-imigração africana) ou idade ou endereço. Era a contagem dos presuntos.
Rivald tomou ar dos pequenos pulmões e, ao avistar Gott à porta do templo, concluiu ser mais do que hora de procurar o monsenhor.

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