17 fevereiro 2008

CAPÍTULO 4

Rivald adentrou o templo de modo cauteloso. Jamais tirou Gott para otário, e primeira medida, naturalmente, passaria por observá-lo. Estava ajoelhado, de costas para a porta entalhada em madeira simples, rezando em aparente contrição – ou matutando quem, onde e como aconteceria o 84. O porquê, para o gato roliço, aparecia claro como o amanhecer: tratava-se de um doente, alguém digno de compaixão.
Pois a sorte de ser gato estava no aparente desprezo dos humanos. Quem seria gênio o suficiente para vislumbrar em um bichano a intenção de denúncia de um assassino? Ou simplesmente acreditar na acusação? Na Paris da época e blábláblá, jamais fizera-se um mísero estudo cognitivo acerca do cérebro animal, quanto mais experimentos simplórios com humanos. Rivald representava um animal degraus abaixo do proletariado, talvez pouco menos sofrido – discussão palatável para uma oportunidade mais adiante.
Fato é que, beneficiado da condição reduzida, Rivald atravessou o templo despercebido. Passou ao lado de Gott e sequer foi notado. À esquerda do altar, tomou o caminho que direcionava a um anexo, o gabinete do monsenhor. Óbvio, Rivald suava frio debaixo dos pêlos negros. Mas se este era o destino, impossível deixar de atendê-lo. Talvez influenciado pelo ar sacro do ambiente, sentiu-se uma espécia de messias, assim mesmo, com M minúsculo, ou alguém já viu um gato ser batizado? Agora, que ele tenha escutado referências religiosas a ponto de referir a palavra messias, aí paira outro assunto.
Diante do gabinete do monsenhor, fez-se desnecessário bater ou pedir para ser anunciado – até porque secretário era figura inexistente diante das dificuldades orçamentárias enfrentadas pela ordem. O gato avistou o monsenhor e, como fiel beneficiário de leite e ração fornecidos pelos religiosos, aplicou a deferência necessária: baixou a cabeça. O monsenhor detinha-se ocupado diante de documentos acima de uma mesa de madeira de lei, olhar apoiado em arremedo pós-medieval de óculos. Rivald fitou-o, sem retribuição. Um gato realmente era uma espécie de sub-raça nesta França, mas o que fazer?
Comunicar-se por meio de sons. Rivald capricou e tirou sua melhor nota:
– Miau!
O monsenhor dirigiu-lhe um olhar amistoso e apenas murmurou, desinteressado:
– Gatinho.
Como bom e orgulhoso bichano, Rivald sentiu o sangue subir-lhe. Não se sabe de onde, acabou por revelar uma habilidade até então inédita, capaz de corar coroinhas e fazer padres mijarem nas calças diante do que julgariam ser uma intervenção do demônio. Rivald estava pouco preocupado com interpretações de terceiros. Apenas disparou:
– Monsenhor, preciso falar-lhe.
O velho imediatamente largou suas tarefas e, incrédulo, fitou a pequena bola de pêlos pretos parada diante de sua escrivaninha. Seria um dia, no mínimo, inédito.

Um comentário:

Anônimo disse...

Hum...Um gato que fala...Logo tu vai estar escrevendo a novela das 10 da Record.